sexta-feira, 25 de julho de 2014

"Num piscar de Olhos..." (CONTO)

“Num Piscar de Olhos” Por Rafaella Vieira


“When my time comes
forget the wrong that I've done
Help me leave behind some
reasons to be missed
Don't resent me, when you're feeling empty
Keep me in your memory,
leave out all the rest
Leave out all the rest...”
Leave out all the rest – Linkin Park













CAPÍTULO 1
Meu maior desejo sempre foi casar com o Zac Efron. Mas isso foi antes de tudo acontecer.
Eu estava lá bem no meio do pátio da escola e ninguém falou comigo e nem olhou para a minha cara. Normalmente eu ando e as pessoas me cumprimentam, sabe, e olham para mim e tudo mais, só que isso não está acontecendo. É como se eu não existisse.
Não é só isso deles me ignorarem que está pegando... Tem algo de muito esquisito ocorrendo aqui. Eu não sei explicar o que é, mas o clima tá pesado. Deve ter acontecido algo do qual eu não tomei conhecimento como: o cancelamento daquela prova de biologia da 5ª feira em que todos nós colamos e, portanto, estávamos garantidos de que tiraríamos 10; ou a suspensão dos jogos de futebol da temporada. Nesse caso o Vitor estaria sob o efeito de possessão demoníaca. Engraçado, eu não lembro da última vez em que eu e ele conversamos, mas tenho a impressão de que não estamos nada bem. Aliás, nada aqui está bem.
Ótimo, agora aquela garota esquisita tá olhando para mim. Eu nunca falo com ela simplesmente porque ela me dá medo. Anita se veste como se fosse um dos integrantes do Tokio Hotel e ela provavelmente tem piercings em locais inimagináveis. E tem mais... Ela nunca sorri. Nunca. Eu acho que ela faz parte de alguma seita dos adoradores de Satã.
E ela é praticamente uma dor no cu.
Vocês conhecem o tipo. Chata e irritante. Toda escola tem uma.
Ops, aí vem ela. Ai, meu Deus, me ajuda.
- O que você tá fazendo aqui?
- Ei, eu estudo aqui.
Ela parecia que estava vendo uma assombração.
- Você não deveria estar aqui.
- E onde eu deveria estar?
- Você não sabe mesmo?
- Que brincadeira é essa, Anita?
- Meu Deus! Você realmente tá por fora, né?
Eu rolei os olhos.
- Do que é que você tá falando, afinal?
- Ok, isso vai ser mais difícil do que eu imaginava.
- Isso o quê, sua maluca?
- Tá legal. Isso nunca aconteceu com alguém que eu conhecia. Quer dizer, a não ser com a minha avó.
Bem... Se o objetivo dela é ser a maior louca do colégio o fato é que ela estava conseguindo alcançá-lo.
- O que diabos sua avó tem a ver comigo? Você tá usando drogas agora é?
- Você está presa, Petúnia.
- Uau! Você precisa mesmo parar de andar com os maconheiros da escola.
- Eu não estou usando drogas! Escuta aqui... – de repente ela diminuiu o tom da voz e olhou em volta meio constrangida, como se estivesse com vergonha de estar falando comigo. – Me espere na esquina da lanchonete depois da aula. E não pense, veja bem, nem por um minuto em ficar andando por aí antes de falar comigo.
Dizendo isso ela balançou a cabeça e saiu praguejando em voz baixa. Eu fiquei assustada. Quer dizer, ela causa esse efeito nas pessoas. E eu não queria contrariá-la de jeito nenhum, por isso, não me restando outra opção eu fui andando até a esquina para esperá-la.
Eu queria ver o Vitor e dizer pra ele... Alguma coisa. Qualquer coisa. Bem, há de se esperar que eu queira falar com o garoto com o qual eu venho ficando há 5 meses, mas nesse momento eu senti que havia algo de importante pra contar a ele e que eu não fazia ideia realmente do que era. Só que ele tem namorada e isso dificulta bastante as coisas entre nós. Eu sei que é apenas uma questão de tempo pra ele acabar o namoro com ela e vivermos felizes para sempre.
Meu Deus, o que aconteceu comigo? É como se a minha mente estivesse vazia. Eu sei que tenho problemas em decorar as datas exatas para as provas de história e nunca consigo memorizar todas aquelas fórmulas de matemática e tal, mas agora é como se a minha memória realmente estivesse comprometida. Eu tenho que tomar umas vitaminas ou algo assim. Será que eu bati com a cabeça em algum lugar?
Eu nem sei que dia é hoje, mas creio que eu devia estar me reunindo com as garotas do time de vôlei para treinarmos para a temporada de jogos. Elas vão me matar se eu não estiver lá. Se bem que elas são muito inofensivas para conseguirem me amedrontar com suas ameaças. Normalmente a coisa funciona de maneira inversa: sou eu quem as ameaço. De qualquer forma, por alguma razão desconhecida, eu tenho que esperar a Anita bem aqui nessa esquina. Eu não sei o motivo disso, mas eu tenho muito medo daquela garota e é melhor que eu faça o que ela pediu. Ela sim é bem ameaçadora. Há algo nela que me dá calafrios. Ela é puro terror.
Olha só quem está ali... O Arnaldo. O que ele está fazendo sentado ali? Matando aula? Esse cara nunca matou aula antes! Não que eu tenha muito conhecimento sobre a rotina dele, mas eu sei que ele é meio nerd e os nerds jamais deixam de assistir aula para ficarem sentados no parque escrevendo. A não ser que ele tivesse ficado acordado a madrugada toda jogando Dungeons & Dragons e esqueceu de fazer o dever de trigonometria. Vai ver que foi esse o caso. Agora ele estava ali sentadinho escrevendo no caderno. Se ele usasse umas roupas da Abercrombie & Fitch até que ficaria bem gatinho.
Eu só posso ter tido uma concussão no último treino. Como é que eu posso estar achando um nerd gatinho? Na verdade ele é muito fofinho e tal. Mas eu nunca me permiti olhar para ele de outra maneira porque o que as minhas amigas iam dizer? Ele é totalmente diferente de mim. E além do mais tem o Vitor.
Vou parar de olhar para ele. Vou parar até de pensar. Vou ficar aqui esperando a Anita.
Eu ia ficar esperando por ela, mas aí eu vi o carro da minha mãe. O Meriva preto e ele parou bem ao lado da lanchonete, na lavanderia. Eu comecei a andar para atravessar a rua – porque nem em um milhão de anos a minha mãe podia sonhar que eu estava matando aula para me encontrar com uma gótica adoradora de demônios – e no momento em que eu corri pela rua no sentido contrário ao da lavanderia uma bicicleta veio vindo na minha direção, e nem desviou de mim nem nada! Ei, eu não sou invisível! O que está havendo com essas pessoas?
- O que você pensa que está fazendo? – a Anita me puxou pela camiseta me tirando do trajeto do ciclista maluco.
Eu me senti desorientada, mas agora eu estava devendo uma a ela. Eu não ia conseguir me desviar a tempo. Digamos que eu sou meio desligada.
- Você salvou a minha vida. – consegui dizer depois que recuperei o fôlego.
- Sua vida? Ah, tá.
Ela foi andando pisando forte como quem estava com muita pressa.
- Para onde estamos indo?
- Eu preciso te mostrar uma coisa.
Nós atravessamos todo o parque passando por entre as árvores e eu tinha a estranha sensação de que não ia gostar nadinha do que quer que ela tivesse para me mostrar.
- Ok, isso é uma daquelas suas coisas de bruxaria? Porque eu tenho que dizer que não vou fazer parte do seu coven. – afirmei, embora estivesse morrendo de medo e se ela me obrigasse eu acabaria fazendo parte do seu coven ou seja lá o que fosse.
Ela não respondeu e quando saímos do parque pelo outro lado andando sob o sol quente eu só conseguia pensar que se soubesse que ia ser obrigada a fazer uma peregrinação dessas teria usado protetor solar porque tudo o que menos queria era meu rosto manchado de sardas. Eu estava tão perdida e desnorteada que não estava me dando conta de para onde estávamos indo, só sabia que era pro sul. Nós andamos pela rua do canal até o final. Até...
Wow. Isso era bem mais sinistro do que eu sequer pudesse imaginar...
- Nem morta que eu vou pisar aí, Anita! – admiti a ponto de me apavorar assim que ela se virou para mim no portão do cemitério.
- Não se preocupe, Petúnia. Você já está morta.



CAPÍTULO 2
Eu tinha duas hipóteses para explicar o absurdo que ela tinha acabado de me falar:
a) Ou ela tinha entrado pesado no crack;
b) Ou ela se diverte assustando as pessoas.
O meu sexto sentido me fez descartar ambas as hipóteses. E o meu sexto sentido sempre me engana, mas desta vez – especialmente dessa vez – eu torci para que ele estivesse mesmo errado.
- Tente não se assustar. – sugeriu calmamente quando entrei atrás dela.
Mais assustada do que eu já estava? Ela só podia estar de brincadeira comigo!
- Tá bom, é aqui.
Eu olhei para onde ela apontava e tudo o que eu pude dizer foi:
- Oh, meu, Deus!
A minha lápide estava ali. E eu sei que era minha porque havia meu nome completo, minha data de nascimento e – para acabar com qualquer penumbra de dúvidas – uma foto minha. Apenas a data final é que não fazia sentido. 26/04/2013? Como assim? Eu morri na sexta feira passada e esqueceram de me avisar?
- Eu sei que é chocante no início, mas acontece com todos.
- Muito reconfortante mesmo.
Eu ainda estava absolutamente crente que aquilo era apenas uma brincadeira de humor negro que as garotas tinham bolado. E convenceram a Anita a fazer parte desse joguinho sórdido e assustador apenas para tornar tudo mais macabro.
- Petúnia, quando você cair na real que isso é sério, vai começar a lembrar de tudo.
- Lembrar?
- Sim. Você deve ter tido uma perda de memória, não é?
- Uhum. – balancei a cabeça confusa.
Eu tive uma grande perda de memória e isso inclui o fato de eu ter esquecido a minha própria morte!
- Você lembra da última coisa que fez na sexta passada?
Vasculhei a minha mente em busca de qualquer vestígio que ocasionasse o evento fatídico que deu fim à minha vida, mas não tive sucesso nenhum nisso. Isso parecia mais com um daqueles episódios de Ghost Whisperer.
- Eu lembro de ter comido pão com creme de queijo no café da manhã.
- É perfeitamente normal.
- Comer pão com creme de queijo?
- Não, sua engraçadinha, as suas lembranças estarem confusas. Quando alguém morre e em vez de ir para o Mundo dos Mortos, fica na Terra, não consegue lembrar das últimas coisas que vivenciou quando estava vivo, entendeu?
- Certo, saquei. Cuidado com a vodca e a morte, pois ambas causam amnésia.
- Você tem até um senso de humor estimulante para uma patricinha morta, sabia?
- Morta. – repeti olhando para o meu próprio túmulo.
Talvez se eu olhasse muito tempo para aquele epitáfio eu acabaria acreditando em toda a insanidade que a Anita acabara de me dizer.
Descanse em paz
Petúnia Junqueira Priori
12/08/1997 – 26/04/2013
Amada neta, filha e irmã
Certo, vocês sabem como é assustador olhar para esse troço?
Eu me pus de joelhos na grama, respirei fundo e fechei os olhos.
Vou tentar entrar nessa onda.
Minha mente entrou em redemoinho. Vagos pedaços de acontecimentos sem sentido começaram a surgir como chuva de papel caindo do teto.
Toda a confusão que aconteceu entre eu e o Vitor... A discussão... O meu desespero... As lágrimas... O ônibus...
Ai... Não. Não. NÃO! Eu não acredito. Tudo veio surgindo como pop-ups na minha cabeça. Realmente aconteceu. Sim. Eu estou morta. Mortinha da Silva.
Ah, isso é tão deprimente...
Parece mesmo que eu estou andando de carrossel e tudo gira. E aí eu pude lembrar de todas as piores coisas que eu gostaria muito de esquecer.
A primeira dessas coisas foi a minha última conversa com o Vitor. Era uma tática milenar que as garotas burras vinham treinando há anos e eu acabei pondo em prática. Eu fui dizer a ele que eu estava grávida, porque de acordo com a minha vasta experiência em 15 anos de vida, ele podia total se apaixonar por mim e decidir largar aquela mocreia que se diz sua namorada. Acontece muito isso. Nos filmes. Infelizmente agora eu não consigo me lembrar de nenhum desses filmes para dizer a vocês, mas não queiram exigir demais da minha memória. Especialmente agora que eu acabo de lembrar que estou morta.
- Quanto é? – foi a primeira pergunta que ele havia feito assim que eu dei as boas novas.
Eu não havia entendido muito bem aquela pergunta, mas no auge da minha ingenuidade eu esperava que ele fosse mais sensível e amoroso.
- Quanto é o quê?
- Pra tirar?
Eu o encarei horrorizada diante da banalidade com que ele tratava esse assunto. Cara, é o seu filho que está aqui dentro!, eu quis gritar. Mesmo que, sabe como é, não houvesse filho nenhum. Mas a gente estava bem do lado da arquibancada do campo de futebol da escola, as garotas estavam treinando e os meninos também e todo mundo ia ouvir os meus berros.
- Tirar? Então é isso o que você acha que eu vou fazer?
- Essa é a única coisa que você deve fazer, Petúnia. Eu não vou acabar minha vida por causa disso.
É exatamente o tipo de coisa que acontece quando a gente se apaixona por um cara pensando que ele vai corresponder aos nossos sublimes sonhos de amor. Sabe, não se pode fazer alguém se apaixonar por você. Não dá pra forçar. A coisa simplesmente acontece.
Ele foi o primeiro garoto com quem eu transei e o único e – agora que estou morta de verdade – o último! Meu Deus, como isso tudo é triste...
Eu havia abaixado a cabeça sentindo as lágrimas pipocarem pelos meus olhos. Ele segurou meu queixo e eu o olhei e mordi os lábios.
- E o que é que eu faço agora?
- Sinto muito, mas você sabe o que tem que fazer.
Eu suspirei. Eu sabia.
CAPÍTULO 3
Eu sempre pensei em como eu iria morrer. Mas nunca pensei que fosse desse jeito. Se eu pudesse mudar eu faria tudo diferente. Infelizmente algumas decisões são definitivas e não se pode voltar atrás.
Eu morri num piscar de olhos.
Eu não vou entrar em detalhes sobre a minha morte, pois a verdade é que nem eu saberia como descrever. Eu saí correndo totalmente atordoada sem conseguir enxergar nada na minha frente a não ser um futuro triste e doloroso sem o garoto pelo qual eu estava apaixonada. E foi quando eu atravessei a rua da frente da escola que um ônibus veio e não deu tempo de pensar em mais nada. Foi bem assim. Não recomendo isso pra ninguém. Eu apaguei e não acordei mais. Quer dizer eu acordei em outro lugar.
Pois bem. Eu morri. Foi fácil. O difícil é o que nos espera do outro lado. Isso é o que surpreende. Nada é como se imagina.
Eu estava num local bizarro onde um segundo parecia durar um ano. Meu corpo parecia pesar uma tonelada em vez de 50 quilos e cada passo que eu dava eu sentia como se estivesse carregando milhões de quilos nas costas. Era duro.
Simplesmente aterrissei lá. Tudo era cinza e nebuloso. Um pesadelo estranho e quando eu gritei a minha voz não saía. Nenhum som a não ser o silêncio. Como se eu estivesse envolvida num casulo do terror. Aí veio um grande vulto negro que me empurrou.
Então eu caí. Meu corpo estava agora normal. Eu me movia levemente numa gravidade natural. Eu estava na Terra. Na escola.
Eu arregalei os olhos para a Anita e ela percebeu que eu lembrara de tudo.
Não tive palavras para falar nada. Eu queria ir pra casa, queria a minha vida de volta. Queria não estar morta.
- Então... Como está se sentindo a Srta. Eu-sou-a-mais-popular-do-mundo? – perguntou com sarcasmo.
Eu mereci essa. Eu realmente não era a melhor pessoa do mundo com o resto da escola. Verdadeiramente eu ignorava todos os que não faziam parte do grupo que eu andava. E nos últimos meses eu nem mesmo me importava com as minhas amigas. Eu estava tão obcecada com o Vitor que nada mais tinha importância pra mim. Eu vivia numa bolha de ilusão. Acho que isso basicamente resume tudo.
- Eu disse a ele que estava grávida... É tanta confusão na minha cabeça.
- Você o quê?
- Eu disse para o Vitor.
- A capitã do time de vôlei e o capitão do time de futebol. Oh, porque será que eu não estou surpresa? Ah, sim, porque ele tem namorada.
- Exatamente.
- Isso deve ser duro pra você.
- E muito. Junte isso ao fato de que agora eu sou absolutamente invisível...
- É, bem vinda ao meu mundo. – ela falou num tom de solidariedade irônica. – Mas, me conta... Como essa bagunça toda sucedeu?
Eu comecei a falar tudo o que eu nunca sequer pensei em contar para as minhas melhores amigas. Falei de como eu me apaixonei. No começo eu achava ele fofo e com um sorriso tão deslumbrante que me fazia derreter, então nós ficamos juntos numa festa que teve lá na praia. Foi quando tudo começou. Ele me beijava de um jeito totalmente devorador e eu não conseguia tirar mais ele da cabeça. Eu sabia desde o começo que ele namorava a Marione, mas tinha plena convicção de que se ele a amasse não iria ficar com outra. E se ele fez isso é porque me amava e não a ela. Ele roubava a moto do irmão dele e a gente ia até o parque ficar se agarrando a tarde toda. Eu voltava pra casa sorridente e com as bochechas coradas de tanta felicidade e emoção. O namoro dele estava com os dias contados. Era o que eu pensava. Assim eu continuei sonhando e ele insistindo para que eu desse a ele o que eu nunca tinha dado a ninguém. E ele sempre dizia que gostava de mim.
- E você deu pra ele? – Anita quis saber interrompendo a narração do meu romance impossível.
- Mas é claro que sim! Existe alguma outra maneira de engravidar por acaso?
Daí eu lembrei, sabe, que estava falando com a Anita. E como é que uma garota como ela podia saber maneiras de engravidar? Coitada, estou certa de que ela nunca nem beijou na boca. A menos se você contar com beijar sapos, porque isso deve fazer parte de algum dos seus rituais de bruxaria/sacrifícios demoníacos/rituais satânicos e assim por diante.
- Acorda! A vida não é um livro de Jane Austen. Quando um cara fala “Eu gosto de você” o que ele tá querendo dizer é “Eu quero transar com você”.
- Mas que romântico! Então eu não estou perdendo nada estando morta, já que o amor não existe...
- Ei, eu não disse isso. Eu só quero dizer que os garotos sentem a coisa de maneira diferente de nós. A gente só tem que esquecer essa coisa toda de romance e ver a verdade de um ponto de vista real.
Uau! Anita me dando aulas de relações amorosas. Essa garota me surpreendeu agora.
- Hum.
- Os garotos não se apaixonam com o coração e sim com o pênis, mas para isso você tem que fazê-los sofrer e esperar. Quanto mais eles sofrerem para ter o que querem, mais ficarão apaixonados. É tudo um grande jogo.
- Como você tem toda essa perspectiva das coisas?
- Eu leio muito. Mas nada desses romances baboseiras e sim livros científicos a respeito do comportamento sexual/amoroso humano. Sabe, eu quero ser psicoterapeuta.
- Ok, acho que você está no caminho certo então.
Ela meio que sorriu. 
- E então ele não acabou com ela pra ficar com você?
- Não.
- Bem, para mim está bastante óbvio o quanto ele é um canalha e o quanto você é tremendamente burra, garota. Os homens só querem isso, então se você quer que eles se apaixonem por você tem que adiar o máximo a concretização do desejo deles, sacou?
É claro que esse é um conselho totalmente inútil para mim, uma vez que eu jamais me apaixonarei novamente por nenhum outro cara e agora é tarde demais para tudo.
- Você sabe que não adianta mais falar essas coisas, né?
- É. A propósito, eu lamento pela sua morte, Petúnia.
- Imagine eu.
- A notícia boa é que: eu sei que você era uma vaca chata que se achava a tal, mas eu de fato estou solidarizada com a sua dor.
- Hum... Muito obrigada, mesmo, Anita. Isso é muito gentil de sua parte.
- É, eu tenho um bom coração.
- Estou vendo.
- Olha, não se preocupe. Eu vou te ajudar a passar pro outro lado. Eu já fiz isso antes...
- Tá legal, Jennifer Love Hewitt, mas que papo é esse de passar pro outro lado? O meu lugar é aqui!
Ela cruzou os braços no peito balançando a cabeça como quem estava lidando com uma criança mimada. Será que os mortos não têm nenhum direito? Pelo amor de Deus!
- A negação é um instrumento muito forte, sabia? Na verdade, vocês da Terra dos Mortos às vezes demoram anos para aceitar as suas condições.
- Eu não tenho uma escolha?
- Não. Pode levar algum tempo, mas assim que descobrirmos a razão de você estar presa aqui, você vai acabar fazendo a escolha certa. A sua única escolha que é... – ela suspirou. – Ir embora.
Mas eu não ia. Eu não vou. De jeito nenhum! Eu ainda tenho milhões de coisas pra fazer. Quer dizer, eu nem vi toda a última temporada de The Vampire Diaries e nem li Harry Potter e as Relíquias da Morte. Eu nem sequer acabei o meu primeiro ano no ensino médio e tecnicamente nem conheci o homem da minha vida. Eu só pensei que tinha conhecido, mas foi alarme falso. E eu desperdicei tanto tempo com bobagens sem sentido em vez de... Viver!
É muito ruim quando você se arrepende das coisas que deixou de fazer exatamente quando a sua vida acabou.
Eu seria capaz de morrer para ter uma segunda chance. Acontece que, eu já estou morta.





















CAPÍTULO 4
A Anita andava do meu lado com medo que as pessoas vissem que estávamos juntas como se eu tivesse lepra ou coisa assim.
- Por que você está mais esquisita que o normal? – gritei. – É contagioso andar comigo?
- Eu não posso ser vista falando sozinha, Petúnia. Infelizmente isso não é aceitável pela sociedade como o comportamento normal. Até mesmo para alguém como eu.
- Ah...
Nós andamos até aquela lanchonete que fica lá em Setúbal. Hellcife’s Burguer. Ela fez questão de escolher uma mesa bem afastada, uma das últimas na calçada.
- Me espera aqui.
- Sim, senhora.
Ela foi escolher o lanche e voltou. Sentou na cadeira na minha frente e pôs o queixo apoiado nas mãos.
- Olha, eu tenho aula de tarde, mas nós vamos dar um jeito assim que a aula acabar. Você tem que me prometer que não vai tentar fazer nenhuma bobagem. – ela falou bem baixo, tentando não mexer a boca.
Era meio patético, porém compreensível diante das circunstâncias.
- Maior do morrer? Como?
- Não fica rondando a escola, é o que eu peço.
- Você não pode me impedir.
- Não, mas eu estou falando pro seu bem. Eu só quero que você entenda que o seu lugar não é mais aqui e eu vou te ajudar a atravessar.
- Tá bom, Anita.
- Você me espera?
- Olha, eu sou péssima em esperar, vou avisando logo.
- Na vida, a gente tem que ser paciente.
- Então você falou bem certo agora... Na vida, não é o meu caso, é?
A garçonete chegou com o pedido e ela começou a comer as batatas fritas e a tomar a Sprite e a morder o cheese burguer.
- O que foi, Petúnia? – perguntou quando viu que eu a estava encarando.
- Nada.
Cruzei os braços e fiquei olhando os carros que passavam. Ficamos em silêncio enquanto ela comia.
- Sabe, você não é tão metida quanto eu pensava. – falou.
- Que legal, obrigada mesmo.
- Mas é teimosa e irritada.
- Tente se colocar no meu lugar, Anita.
- Eu estou tentando.
Ela levantou da mesa e fomos andando para a escola.
- O que eu devo fazer enquanto você está em aula? Porque eu não posso ir até a biblioteca pelo menos? Ou até o vestiário masculino? Eu sempre quis ir lá se eu fosse invisível.
- Cala a boca e fique longe de problemas. – ela disse saindo.
Ah, certo. Quantos problemas se pode arrumar quando se está morta? Tentei fazer uma lista, mas não tive ideia alguma.
Fui para o campo de futebol da escola. Ele fica do lado de fora do prédio, então eu não estava necessariamente na escola. Ai, dane-se eu estava sim, e daí? O que pior podia acontecer?
Aí eu vi. Sim era o Vitor jogando futebol com os amigos. Depois ele bebendo água e indo até o primeiro banco da arquibancada e beijando a Marione. Será que um coração pode doer quando se já morreu? Porque eu sentia um aperto forte. Arrependimento, dor, muita dor sim. Todas as lembranças vindo à tona cada vez mais vívidas. Era disso o que a Anita estava tentando me proteger?
A Marione o abraçava pela cintura e ele ficou bem no meio das pernas dela beijando-a. Eles estavam quase se comendo ali no meio de todo mundo. E eu lembrei de um tempo em que nós ficávamos assim lá na praça atrás do Colégio Brasil. Eu sentada na moto e ele no meio das minhas pernas. Me beijando, alisando meus cabelos, dizendo o quanto gostava de mim e que era só uma questão de tempo para acabar tudo com ela. Depois a nossa primeira vez. Quando eu realmente acreditei que ele podia estar apaixonado. Graças à minha incapacidade de controlar meus impulsos apaixonados eu fiz com ele.
Nós fomos para a praia de Candeias, onde ele deixou a moto e atravessamos de barco para a Ilha dos Amores. Era finalzinho de tarde e o sol se pondo, o mar esverdeado, tudo parecia perfeito, então quando ele falou:
- Sou completamente louco por você, Petúnia.
Eu fechei os olhos e deitei na areia deixando o corpo dele se pressionar sobre o meu. Deixando as mãos dele irem mais além do que já tinham ido nas outras vezes. Deixando ele tirar toda a minha roupa... Deixando ele entrar em mim... E naquele momento de ilusão total eu quase achei que era feliz e que estava sendo a melhor coisa que havia acontecido. Até mesmo quando acabou e ele começou a se vestir bem depressa e eu vi uma pequena mancha de sangue na areia branca onde ficou a minha virgindade.
Depois desse dia tudo havia sido diferente. Ele não mais se esforçava em dizer o quanto gostava de mim, o quanto era louco por mim nem nada. Nem falava mais em acabar com a Marione. E toda vez que eu tentava tocar no assunto ele ficava com raiva de mim como se eu tivesse culpa de alguma coisa. Mas eu gostava tanto dele que fazia qualquer coisa só para ter uns raros momentos de fuga. E eram cada vez mais raros. Uma ou outra vez ele me procurava escondido depois da Educação Física ou dos treinos e marcava de me pegar lá na esquina da Padaria Magia do Trigo, para ninguém desconfiar. Então a gente ia para trás do canteiro de obras do condomínio do tio dele. Cada vez lugares mais escondidos e nada românticos. E eu sempre ia como uma idiota. Agora é tarde demais para perceber o quanto eu me iludi. Paguei um preço alto demais.
Eu sei que havia alguns meninos gatos no colégio que eu pudesse gostar ou sentir algo, mas o Vitor ele tinha atitude e sempre deu em cima de mim, ao contrário dos outros. Os outros meninos pareciam muito bobos perto dele. Talvez por ele ser mais velho. Sei lá. Mas eu era da teoria que os garotos tinham que chegar. Odeio esperar as coisas acontecerem. Por isso gosto de garotos que fazem as coisas rolarem.
No entanto havia sido o pior erro ficar com ele. Eu não tenho nada em comum com esse cara. Eu nem sei o que me fez cair de amores por ele em primeiro lugar. Tá, tudo bem, seu 1,80m de pura gostosura realmente ajudou no impacto, mas, sério, o que veio depois? Só agora que eu morri é que percebo que não o conhecia por dentro. Meu Deus isso é tão irreal.
Isso é inaceitável. Tudo isso é inaceitável.
Eu confundi meus sentimentos por ele com a minha visão do que seria um relacionamento perfeito. Eu não o amava. Isso nunca aconteceu. Eu apenas achava que sentia por ele o que eu desejava intimamente sentir por alguém porque eu queria que ele me amasse de volta.
Acho que a morte nos torna mais inteligentes. É, tarde demais para constatar isso, não é?
Meu estômago embrulhou, mas eu não tinha como fazer parar. Acho que fantasmas não vomitam. Só acho. Se eu continuasse mais tempo ali ia comprovar a teoria, mas aí resolvi sair.
É desesperador o fato de quando a gente quer loucamente ser amada por uma pessoa fazemos qualquer coisa, nos submetemos a tudo. Eu nem gostava dele tanto assim, eu só estava carente. Algo de doentio me prendia a ele porque eu lembro de estar com ele e não me sentir tão apaixonada como no começo, mas mesmo assim uma parte de mim queria acreditar que esse sentimento não havia ido embora. A mesma parte de mim que acreditava que ele podia me amar. Se eu fosse um pouco mais inteligente eu teria acabado tudo.
É, de uma forma ou de outra tudo acabou.








CAPÍTULO 5
Então eu descobri que mortos choram. Pois é. Nem a morte parece nos salvar das emoções terrenas. Sei que isso é muito triste, mas é bom vocês ficarem avisados.
Eu andei para longe da escola. Decidi fazer um tour pelo universo da saudade. Como estariam as minhas amigas? Eu não sei se estava preparada para vê-las novamente. Será que sentiam tanto a minha falta quanto eu sentia a delas?
Achei melhor ir para casa. Quando eu entrei tudo parecia continuar na mesma. Como se nada tivesse acontecido.
Sabiam que aquela coisa toda de mortos atravessarem as paredes é verdade? Yeah. Eu me sinto como se tivesse superpoderes. A Mulher Invisível. Uhuuu. Seria cômico se não fosse trágico.
Meu irmão estava falando no skype com os amigos patetas dele. Mas ele parecia meio triste. Meu pai estava lendo no quarto e mamãe dormia profundamente com a boca aberta. Um copo com água pela metade e uma caixa de Lexotan estavam na mesa de cabeceira. Eu queria poder ter tido mais tempo com eles. Mas acho que todo mundo que morre quer a mesma coisa. Mais tempo.
Se você por acaso conhece a Fada do Tempo me avise porque eu preciso muito dela.
Então, última parada: meu quarto. Estava exatamente como eu me lembrava da última vez que estive aqui. Todo branco, as fotos minhas e das meninas na parede acima da escrivaninha. Meu notebook cor de rosa em cima da bancada. As cortinas lilás entreabertas, minha colcha de cama florida.
Não consegui mais ficar ali tão perto da minha família. Era deprimente demais.
Fiquei me perguntando o que eu devia fazer. O que os mortos fazem quando não estão mortos? Pesquisar.
Saí e fui andando sem rumo. Ah, a praia. A praia era um bom lugar. Eu cheguei na Avenida Boa Viagem. Como anoiteceu tão rápido? A lua estava cheia e iluminando os pontos escuros onde as luzes não chegavam. Que interessante que eu deitei na areia e podia senti-la. Tão estranho. Parece que parte de mim estava morta, mas ao mesmo tempo viva. Por que eu era capaz de sentir certas coisas? Fiquei olhando as estrelas e a lua lá no alto. O universo acima de mim. Será que era para lá que eu iria quando atravessasse? Eu ficaria lá no alto vendo o mundo aqui embaixo? Eu não sei se queria isso. Não, com certeza não. Eu queria ficar aqui. Mas fazendo o quê? Vivendo como uma sombra atrás da Anita – a garota superesquisitona – sem ser capaz de ter mesmo os prazeres da vida? Nunca me senti tão patética.
Depois de um longo tempo de reflexões voltei a andar contornando as ruas de Boa Viagem, bem para dentro, longe dos prédios. Os arranha-céus me davam arrepios agora. Eram como grandes monstros me espionando lá do alto. A maioria das casas estava com as luzes apagadas. Caminhei e caminhei até chegar no posto de gasolina que fica lá no final da encruzilhada perto do canal. Havia um monte de garotos bebendo do lado de fora da loja de conveniência. O carro com a mala aberta tocando Chasing the Sun de The Wanted. Eles fingiam estar numa rave. Eu parei para observar. Em outros tempos eles teriam me olhado e chamado para beber com eles ou falado qualquer coisa do tipo “ei, gostosa, você veio de um hospício? Porque você é uma coisa de louco”. Mas agora, eu não existo para nenhum garoto. Nenhum deles quer saber de mim.
Perambulei pela noite escura. Eu acho que virei um zumbi. Será que eu devia ir até o aeroporto como em Warm Bodies? Por que eu não estava cansada, mas me sentia tão perdida?
Após me dar conta do óbvio fui até o cemitério de novo. Já havia amanhecido o dia quando cheguei lá. Andei até o meu túmulo.
E ali estava aquele garoto fofinho da minha sala de novo. O Arnaldo. O que logo ele estava fazendo ali? Que interesse ele podia ter em mim para vir me visitar quando o resto do mundo parece ter me esquecido?
Ele ficou olhando pro meu túmulo e colocou uma flor. Uma Petúnia.
Lágrimas escorreram do meu rosto. Era estranho que apesar de tudo exatamente ele sentisse minha falta.













CAPÍTULO 6
Sei que é esquisito que eu fique com vergonha nesse estágio em que me encontro. Mas foi exatamente assim que me senti, portanto saí correndo de lá. Como se ele pudesse me ver chorar.
Eu andei por muito tempo até chegar na escola onde fiquei sentada na calçada esperando que a Anita aparecesse. Mas lógico que ela já tinha entrado, pois ela é daquele tipo que chega antes de todo mundo. Eu não sabia que horas eram, porém pela pressa dos alunos que desciam do carro ou chegavam à pé por ali, dava para notar que estavam atrasados. Eu queria poder ter meu iPod. Eu gostaria de ouvir Blink 182. Não sei por que, mas I Miss you começou a tocar dentro da minha cabeça.
Where are you and I'm so sorry
I cannot sleep I cannot dream tonight
I need somebody and always
This sick strange darkness
Comes creeping on so haunting every time
Fechei os olhos encostando a cabeça na parede de muro de pedra da escola. O sol sob o meu rosto. Eu podia sentir o calor. Não sei, acho que perdi a noção do tempo enquanto músicas de Gavin DeGraw, Blink 182 e The Killers dançavam nos meus ouvidos.
Senti uma mão me empurrar e abri os olhos espantada.
- Anita?
- MAS ONDE VOCÊ SE METEU ONTEM? – ela berrou e muitas pessoas olharam pra nós.
Quer dizer, para ela. Já que ironicamente sou eu quem sou invisível agora. As Vantagens de Ser Invisível... Não pera.
- Eu estava andando por aí.
Ela pareceu notar que as pessoas estavam percebendo que ela falava com ninguém, então baixou a voz:
- Venha comigo.
Eu fiquei de pé.
- Pra onde?
- Pra minha casa. Você não entende as coisas?
Nós fomos andando lá para o lado de Setúbal.
- Não, Anita, já está bastante óbvio que eu não entendo nada.
- Você não está levando à sério.
Eu bufei sem responder.
- Cedo ou tarde você vai ter que partir. – ela falou depois de um tempo.
- Eu prefiro tarde.
Nós continuamos andando até chegar na casa dela. Era uma casa de muro de pedras na Rua Professor Augusto Lins e Silva. Perto da escola.
- Bem vinda ao meu lar.
Ela abriu o portão, quase não havia jardim, só umas plantas e a garagem do lado. Os carros não estavam lá, o que significava que estávamos sozinhas.
Foi aí que me enganei. Quando entramos na sala meu coração deu um pulo.
- Oi. – era ele.
O Arnaldo.
- Oi, traste.
- O QUE ELE É SEU? – gritei.
Ela me ignorou.
- ELE É O QUÊ SEU? ME FALA, ANITA!
Como ela não falou eu a empurrei. E a parte estranha da coisa foi que o corpo dela se moveu pro lado quando eu a toquei.
- O que é que você tem? – ele perguntou.
- Nada.
Ela andou para o corredor e entrou no quarto fechando a porta.
- Você é doida, Petúnia?
- É pra mim responder com sinceridade ou...
- Não tente isso outra vez.
- Tá, mas você não me respondeu: o que o Arnaldo é seu?
- Ele é meu irmão.
- Uau. Sério?
- É, somos irmãos gêmeos. Difícil de acreditar?
Eu fiquei chocada. Aí comecei a ver as semelhanças. Ele dois são branquinhos e têm cabelos escuros, olhos cinza esverdeados, um pouco de sardas bem discretas no rosto. É, eles realmente são parecidos. Mas como eu nunca percebi antes? Talvez a verdade seja que eu nunca percebia o mundo ao meu redor além das minhas amigas e dos garotos considerados populares que queríamos ficar. E parando para pensar assim me sinto triste. Mais ainda do que deveria estar. Eu vivia uma vida tão superficial. Não enxergava além das coisas.
- Eu nunca pensei...
- Tá, eu sei. E daí?
- E daí nada.
- É, somos irmãos, não faz nenhuma diferença para você. Ou faz?
- E porque você é de outra sala? – perguntei ignorando a pergunta dela.
- Porque eu nasci com ele, porém não sou obrigada a ficar colada nele vinte e quatro horas por dia.
- Ah.
- Vai me dizer que você se importa?
Claro que era uma pergunta retórica por isso fiquei calada. Eu me importava? De alguma maneira sim. Porque ela é uma pessoa boa, diferente do que eu pensava. E porque ele é uma pessoa boa, como eu sempre suspeitei. Mas... Além da bondade evidente... O que o levou a ir colocar uma flor no meu túmulo? Isso me comoveu de uma forma que eu não sabia como definir. E tampouco queria falar para a Anita. Mas o fato é que o Arnaldo sentindo a minha falta despertou em mim certas sensações que eu não estava preparada para sentir.
E de repente... Eu me sentia viva.











CAPÍTULO 7
- Olha, fica aqui. Eu vou almoçar e já volto.
- Mas porque eu tenho que ficar aqui?
- Por que eu não quero ter que ficar com você enquanto estou comendo com meu irmão.
- Estou ressentida com suas palavras.
- Desculpa, mas é esquisito. Não quero ter que fazer alguma merda na frente do Arnaldo para ele não desconfiar.
- Tá legal. – concordei sem concordar.
- Já volto.
Deitei na cama dela. Era confortável. Porque eu podia atravessar paredes e quando deitava na cama não ia parar no chão ou no centro da Terra? Levantei e tentei tocar na porta do guarda roupa. Na hora que fiz força minha mão foi com tudo e atravessou. Então num segundo momento eu agi como se eu estivesse viva e peguei lentamente tentando abrir. Então minha mão não atravessou. Toquei na porta e puxei abrindo-a. Ela só tinha camisetas escuras e calças jeans. Nossa Senhora do Dark Side alguém anda precisando de um personal stylist aqui! Colado na porta do armário havia um pôster gigante de One Direction. Mas como assim? Gente, é impressionante o que as pessoas escondem em armários. Não estou sendo sarcástica. Eu sou directioner – ou era, porque não sei se mortos podem ser fãs, mas enfim – e ela é a garota punk/rock/adoradora de satã/bruxa/etc então observem o meu choque.
Fui até a escrivaninha e liguei o computador. A tela era uma foto da Demi Lovato. Fiquei novamente chocada. Tiver que rir. Mas gente, eu não estava mais entendendo mais nada sobre a Anita! Quer dizer, nós totalmente podíamos ser amigas se eu soubesse dessas coisas antes. Ou, bem, se ela não fosse tão estranha pelo menos. Será que ela tem um FC no Twitter? E qual seria o user dela? @ilysatan ou coisa assim?
Cliquei no icon da internet quando a porta se abriu.
- O que você está fazendo?
- Nada. Só ia entrar no Twitter rapidão pra ver um negócio.
- Acho melhor não.
- Mas por quê?
- Isso é macabro, Petúnia. Quando as pessoas morrem os outros ficam postando aquelas merdas de “Sinto sua falta blá-blá-blá” nos perfis das redes sociais. Você não acha ridículo?
- É. – concordei. – Mas eu só queria saber se teve algum surto, se saíram fotos dos meus ídolos.
- Olha, esquece essas coisas e vamos nos focar no que importa... Hoje de noite nós vamos fazer o ritual.
Meu corpo gelou. Bem, minha alma. Ou qualquer coisa assim.
Mas eu falei:
- Tudo bem.
Porque no fundo eu acho que nenhum ritual que ela fizer vai me tirar daqui.
- Então, eu tenho curso de inglês e quando eu voltar a gente faz tudo.
- Ok.
Ela foi tomar banho e ligou o som. Fiquei ouvindo músicas de Marcus Foster. Quando ela saiu do banheiro toda pronta me perguntou:
- Você vai ficar ouvindo músicas, né?
- Claro.
Que não mesmo.
Ela saiu e eu esperei dois minutos e fui até o quarto do Arnaldo. Ele estava deitado na cama lendo um exemplar surrado de O Apanhador no campo de centeio – que é um dos meus livros clássicos preferidos assim como O Grande Gatsby e Romeu e Julieta. Ele não é só fofinho. Ele é PERFEITO. Senti um calor vindo à tona. Ele estava de short e as pernas dele eram... Uau. Nunca tinha visto que ele era tão gostosinho. E por baixo do short dava pra ver a cueca azul e eu inclinei minha cabeça mais um pouco para ver se via mais coisas... É, parece que a morte não abalou meus hormônios. Socorro! Alguém me tire do quarto dele, por favor. Tipo agora!
Eu cheguei mais perto. Primeiro lembrei que uma vez a professora de literatura me botou pra fazer dupla com ele para um trabalho sobre esse livro. Mas em vez de marcar para fazermos juntos – como ele havia sugerido – eu só disse:
- Amanhã eu te trago um resumo sobre o que eu acho do livro e depois a gente discute.
- Tudo bem. – ele havia dito.
Então no dia seguinte eu dei a ele e ele disse:
- Esse é o meu resumo, lê também e me diz o que achou.
E eu falei:
- Não precisa, eu confio em você. Você faz um mix dos dois e pronto. Sei que vai ficar bom.
- Tá bom.
Agora lembrando isso me sinto tão mal. Só sei que tiramos 10 no trabalho.
Eu estou olhando fixamente para ele quando de repente ele tira um papel amassado do livro. Ele está com os olhos úmidos. Eu vi a minha letra no papel e um arrepio tomou conta de mim quando cheguei mais perto dele.
Eu acho que o Holden Caulfield é um cara e tanto. Ele diz tudo o que pensa do mundo dele sem medir as palavras. O jeito como ele vê as coisas é tão verdadeiro e profundo. Porque por mais que ele seja privilegiado ele tem uma visão real da sociedade, em vez de ser um alienado. Eu me emocionei com esse livro. Acho que todo mundo devia ler.
Eu nem lembrava que tinha escrito aquilo. Mas era a verdade. Foi exatamente o que eu achei quando li o livro pela primeira vez. No entanto agora eu me pergunto: como eu pensei tudo isso sobre o Holden Caulfield e não pensei isso da minha própria vida?
Aí eu vi que o Arnaldo se levantou e pegou um caderno. Botou o papel que eu escrevi ali dentro. Fiquei emocionada. O que ele sentia por mim?
O celular dele tocou.
- Oi, Guto... Tô indo... E você como tá?... Ah, tá beleza, eu fiz o exercício de física, mas brisei geral naquelas questões de química orgânica. E não tô com cabeça pra estudar agora... É, eu sei, cara, eu sei.
Eu queria saber o que o outro menino estava falando, mas infelizmente só podia ver/ouvir um lado da conversa. Até que ele desligou. Então ele tirou a camiseta e entrou no banheiro deixando a porta aberta. Fiquei sem ar. Será que mortos podem parar de respirar? OMG ele começou a tirar o short e a cueca e eu virei pro outro lado. Meu coração aos pulos. Quer dizer, não sei se um fantasma pode ter batimentos cardíacos, mas a sensação era essa. Eu queria e não queria entrar no banheiro. Sensações novas e agoniantes me possuindo.
CAPÍTULO 8
Saí do quarto e voltei para o quarto da Anita. Fiquei pensando nele. Desliguei o som e liguei a tevê para ver se esquecia aquelas coisas malucas que se passavam na minha cabeça. Lembrei de algumas coisas... Das olhadas que ele me dava durante as aulas, da festa do Pedro ano passado quando eu quase fiquei meio a fim de ficar com ele... Mas porque eu não fiquei com ele? Ah, sim, porque eu sou uma idiota. Deitei na cama e fiquei vendo aquele filme As 10 Coisas que eu Odeio em Você. O Arnaldo sem camisa surgiu na minha mente novamente. Eu queria fazer com ele As 10 Coisas que Eu Lamberia em Você.
- Se comportou? – perguntou a Anita me dando um susto.
- Lógico.
- Então, vamos nos preparar.
- Como assim?
- Você já sabe do que eu estou falando, não se faça de louca.
- Eu sei, mas não sei se é uma boa.
- Mas você tem que fazer, Petúnia.
Bufei.
- Vamos para o cemitério.
- Nossa, que programa legal. Posso levar pipoca e refri?
- Olha a minha cara de quem está brincando, Petúnia.
- Ok.
Ela pegou a mochila e colocou dois livros dentro e um rosário. Saímos à pé até a Rua Cosmorama onde seguimos pelo canal até Porta Larga lá no fim, onde ficava o cemitério.
- Você pode ficar em pé ou sentada. O que acha melhor?
Eu podia ficar deitada, tipo, na cama do irmão dela? Por que isso definitivamente eu ia achar muito melhor.
- Feche os olhos.
Eu fechei e fiquei em pé.
Ela começou a falar coisas bem baixinho como se estivesse fazendo uma oração. Ou talvez fosse um ritual demoníaco ou um exorcismo, nunca saberei de verdade. Mas em vez de prestar atenção eu fiquei com os olhos fechados pensando no Arnaldo. Os olhos dele são brilhantes. Ele tem um rosto lindo. Fiquei pensando e tentando lembrar de todas as vezes que nos falamos na escola. Não foram muitas, infelizmente. Porque algo que na época parecia tão sem importância agora era a coisa mais importante? Eu queria lembrar de tudo sobre ele. Meu coração e meu corpo/alma eram tomados de um calor delicioso seguido de um farfalhar de explosões no meu estômago ao pensar nele. Esse sentimento é como nenhum outro.
- Petúnia, abra os olhos! – ela quase gritou.
Eu abri. E olhei em volta como se eu estivesse acordando. Mas estávamos lá no mesmo lugar. O cemitério escuro de Porta Larga.
- O que houve? – perguntei.
- Você não está vendo nada? A luz?
- Tipo como em Ghost do Outro lado da Vida?
- Mais ou menos. Só você pode ver a luz.
- Bem, eu não estou vendo luz nenhuma a não ser do poste lá do portão. – apontei.
- Eu não entendo. Você devia supostamente ver a luz depois do ritual. – ela falou parecendo desapontada.
- Você fez tudo certo?
- Claro que sim.
- Oxe, sei não... – falei, mas por dentro eu estava saltitando.
- Isso não faz sentido nenhum.
- Todo mundo tem que ver essa tal luz? E se comigo for diferente? E se eu tiver que ficar aqui por alguma razão?
Seu irmão pelado, por exemplo. É uma razão pela qual vale a pena continuar vivendo. Mesmo estando morta.
- Todo mundo vê a luz quando tem que atravessar.
- Então talvez eu não tenha que atravessar. Talvez meu lugar seja aqui.
Quer dizer, não ali no cemitério. Claro. Na casa dela.
- Não é não.
- Mas e então porque eu não vi a droga da luz?
- Eu não sei. Quando uma pessoa não vê a luz é porque não está preparada para ir ainda. Como se tivesse que resolver algo. Mas você não tem nada para resolver.
Ah, tenho sim, querida Anita.
Fiquei calada.
- Vamos, bora pra casa. – ela falou.






CAPÍTULO 9
Fomos andando para casa. Eu flutuando de felicidade como não me sentia há muito tempo. Talvez nunca para falar a verdade. Eu queria agarrar essa felicidade e não largar nunca mais. Mas a Anita não parecia nada feliz e ela é a única pessoa com quem eu posso contar, a única que pode me ver. Então eu fiquei um pouco desapontada. 
- O que eu vou fazer com você? – ela questionou como se estivesse falando mais consigo mesma.
- Nada. Eu não estou incomodando, estou?
- Ah, que é isso! Claro que não. Você é como um animal de estimação.
- Animais de estimação são fofos.
- É? Eu não gosto de bichos.
Viu? Esse é o problema com Anita.
Então eu tive aquela sensação súbita de tristeza como seu meu peito estivesse sendo esmagado. E comecei a tremer. Abaixei a cabeça. Era assim sempre quando eu chorava. Andei para longe dela, mas daí senti seus braços me puxando e ela me abraçou.
- Foi mal, Petúnia. Eu não quis dizer isso.
Agora eu estava me sentindo triste e solitária e depois menos triste e menos solitária com seu abraço. Até que me acalmei e a dor foi passando. Foi quando me dei conta de que ainda estávamos abraçadas.
- Eu sinto você em meus braços. – falei.
- Eu sei.
- Você me sente também?
- Claro.
- Então... Isso significa que eu posso abraçar qualquer pessoa? Qualquer pessoa pode me sentir também?
- Sim, se você se concentrar nos seus sentimentos a pessoa pode te sentir. Mas não podem te ver. Só eu te vejo.
Então... Eu podia tocar no Arnaldo. Um choque percorreu meu corpo só de imaginar minha mão na pele dele.
Ela notou que eu estava pensando em algo, porque logo falou:
- Nem inventa de sair tocando nas pessoas por aí, Petúnia!
- Eu não falei que ia tocar em ninguém.
- Isso não se faz. Esse tipo de coisa assusta as pessoas. Por favor, eu estou pedindo...
- Eu não vou assustar ninguém, já falei.
Claro que eu não ia assustar.
Nós chegamos na sua casa e eu fiquei imediatamente procurando por ele. Arnaldo estava sentado na mesa da cozinha. Aqueles sentimentos vieram à tona assim que o vi. Não sei o que me atingiu naquele momento, mas de repente eu senti algo que nunca senti antes. Era como se eu o estivesse vendo pela primeira vez.
Os pais dele também estavam lá, então eu fui para o quarto da Anita para dar um pouco de privacidade a ela. Liguei a tevê.
Ai, que vontade de comer sushi. Mas mortos não comem. Então porque a minha barriga está roncando? É um saco estar morta, sério mesmo. Vocês não iam querer estar no meu lugar.
Depois eu esperei a Anita dormir e escapuli para o quarto do Arnaldo. Eu tinha uma necessidade incontrolável e incompreensível de ficar perto dele todos os momentos.
Queria tocá-lo, mas pensei no que a Anita tinha dito. Será que ele sentiria aquele arrepio que às vezes a gente sente no pescoço e que algumas pessoas dizem que quando sentimos isso é porque “a morte passou por nós”? Afe. Eu não queria assustá-lo. Eu sentei na cadeira ao lado da cama me acomodando, coloquei os pés em cima do móvel da janela e fiquei olhando-o. Ele estava encarando o teto, depois fechou os olhos e acho que adormeceu porque senti sua respiração ficando regular.
Eu passei a noite toda olhando para ele e tentando descobrir por que ele não saía da minha cabeça. Eu podia ficar assim para o resto da minha morte. Se isso significasse estar perto dele.
Quem não se apaixonaria por ele?












CAPÍTULO 10
Voltei pro quarto dela, antes que ela acordasse e começasse com aquela ladainha sobre eu perambular por aí.
Pelo menos eu não preciso ir pro colégio. Oba! Às vezes é tão bom estar morta.
- Eu vou tentar pensar no que pode estar prendendo você aqui. – disse ela antes de ir para a aula.
Eu tinha um grande palpite, mas fiquei calada.
Quando deitei na cama da Anita fiquei pensando... Eu iria ficar pra sempre desse jeito? Aqui? Eu sentia falta da minha casa, da minha cama, dos meus pais e até do idiota do meu irmão. Sentia falta de conversar com as minhas amigas.
Fui no quarto do Arnaldo e procurei aquele caderno no qual ele havia guardando meu resumo do livro. Então eu vi que não era um caderno normal. Era um caderno de desenho. E, vocês não vão acreditar nisso, olha só: tinha meu rosto desenhado em várias folhas. Isso aí mesmo! E pelos olhos dele eu era linda. Eu tinha que beijar esse cara. Folheei o caderno até que numa página havia algo escrito:
É você, Petúnia. Eu gosto de você desde a primeira vez que eu te vi. E se você soubesse como eu vejo você, teria deixado o Vitor e me dado uma chance. Ou não. Agora eu nunca vou saber. Eu só queria que a gente pudesse ter conversado mais. Que você soubesse como é especial. Não sei nem porque eu tô escrevendo essas porcarias como se fosse a porra de um diário ou coisa assim, já que você nunca vai ler mesmo. E eu nunca teria coragem de te mostrar isso. Então é só, vou nessa. Adeus.
Pensei em mandar um e-mail pra ele, mas estou absolutamente certa de que ele ia achar que era uma brincadeira de mau gosto. Que tipo de pessoa acredita em fantasmas que mandam e-mail? Esse tipo de coisa só acontece em Supernatural.
Como eu fui tão burra me envolvendo logo com o garoto errado em vez de esperar pelo garoto certo? Agora eu sinto que esperaria a vida inteira por um garoto como o Arnaldo. E sei que valeria a pena. O garoto certo não é o que chega antes, é o que fica do seu lado, mesmo quando você não está mais lá. Mesmo depois que não há a menor chance de ficar com você.
Assim que a Anita chegou da aula eu soltei:
- Eu estou a fim do seu irmão.
Eu não sabia quanto tempo ainda teria, mas a morte me deu uma perspectiva diferente de que cada segundo é precioso. Acho que por isso falei.
- Que brincadeira é essa agora?
- Não estou brincando.
- Era só o que faltava.
- E eu acho que ele gosta de mim... Você podia perguntar.
- Você tá maluca, Petúnia? Eu não ouvi isso.
- Qual o problema? – perguntei.
- Você entende o que eu quero dizer?
- É claro que não.
- Você está morta, Petúnia. Quando é que você vai admitir isso?
- Hey, será que é pedir demais que você tenha um pouco de respeito? Mortos também têm sentimentos, sabia?
- Meu Deus! Você é a morta mais chata que eu já vi. Você é mais chata do que aquela apresentadora enjoada do Brazil Next Top Model.
- Ela não está morta.
- O que é uma pena.
Nós duas rimos.           
- Então... Você quer que eu dê uma de cupido pra um fantasma e o meu irmão?
- Eu só quero que ele saiba que eu gosto dele também.
- Vamos pensar nisso com calma.
Ela não descartou a possibilidade, o que era uma ponta de esperança para mim.
As horas e dias eram preenchidos por pensamentos sobre o Arnaldo. Seus olhos cinza esverdeados na minha mente.
De algum modo amar ele torna a minha morte mais fácil. Todos os dias da minha pós vida são ocupados em observar ele e cada pequena coisa que ele faz. Ele dá um toque especial a tudo. Torna tudo colorido. Ele é a luz no meio das trevas.
Eu tentava ficar perto dele sempre que a Anita não estava por perto. Durante a maior parte do tempo eu não tinha mais nada a fazer a não ser ficar cada vez mais louca por ele.









CAPÍTULO 11
Uma vez a Anita chegou do curso de espanhol (não sei quantos cursos essa menina faz, mas são muitos, fico impressionada com quantas coisas cabem na cabeça dela, já que na minha mal consigo decorar as coisas da escola) e escancarou a porta me dando um susto e foi direto para o banheiro. Eu sabia que ela estava de mau humor e resolvi puxar papo furado.
- Não é preconceito, mas Dixon é muito feio para a Silver.
Ela apareceu na porta do banheiro com a escova de dente na mão e a boca melada de pasta.
- Do que você tá falando?
- 90210.
- Você não tem o que fazer mesmo, né? – disse balançando a cabeça e voltando para a pia.
- Anita, se eu não estivesse morta, eu certamente morreria de tédio. Você não sabe quanto tempo livre se tem quando não há escola, deveres de casa e vida social.
- Sério, eu tenho que arrumar um jeito rápido de fazer você atravessar.
- A única coisa que eu quero atravessar agora é a parede do quarto do seu irmão.
- É exatamente por esse motivo que você não pode ficar solta por aí, sua fantasma tarada.
- Ei, a culpa não é minha se ele desperta em mim essas coisas...
- Ele é virgem! – ela berrou.
- Ownnnnn... Que fofo.
- Meu Deus, você parece uma doente mental, Petúnia. Sem brincadeira.
- Você pensou no que eu te falei? Sobre falar com ele?
- Não.
- Vem, cá, Anita, você tem que ver isso.
- Ai meu Deus... – ela bufou.
Ela me seguiu até o quarto dele e eu mostrei o caderno de desenhos.
- Qual é a desse momento meu-querido-diário? – ela perguntou folheando as páginas e vendo os desenhos do meu rosto em cada uma delas. – Isso é absurdamente doentio. Eu não era capaz de imaginar que meu irmão é um louco psicótico.
- Ele não é! Ele é fofo. E lindo, e gostosinho e tão romântico...
- Tá bom, Srta. Eu-Morri-e-Não-Sabia, pare com isso antes que eu vomite. É do meu irmão que estamos falando, ok? Eu quero deixar bem claro que seja lá qual for o tipo de romance maluco entre morta-e-vivo que esteja rolando, eu pretendo ficar de fora.
- Você não tem um pingo de sensibilidade, Anita?
- Desculpe ter que arrastá-la para a realidade, querida, mas você está morta.
- Anita, esse assunto tá meio que cansativo, nós podemos mudá-lo, por favor? Sério, isso tá ficando redundante, sabia?
- Repetição normalmente é uma boa técnica de aprendizado.
Ela estava de um jeito que não pode ser descrito como bom humor.
- Eu só queria que você me ajudasse. Eu amo ele.
- Você tá obcecada com esse cara que por acaso é o meu irmão. Eu nunca vi uma pessoa morta se apaixonar antes.
- Nem eu. Vai me ajudar?
- E o que eu ganho com isso?
- Ser boa e generosa.
- Ser boa e generosa? Isso vai me servir pra quê?
- Talvez a gente descubra porque eu não consegui atravessar para o além ou sei lá o quê, já parou para pensar nisso?
- Não, Petúnia, não parei ainda. E só para constar o seu caso é o mais louco que eu já vi. Não faz o menor sentido. Tudo bem se você não quisesse atravessar, porque é difícil se desprender quando se teve uma morte brusca e traumática. Mas... Já devia ter visto a luz.
- Foi uma morte indevida! – argumentei.
- Mesmo assim.
- Não é como se eu tivesse dado um tiro na minha cabeça. Eu apenas saí correndo e não vi quando o ônibus me pegou. Eu não estava no meu juízo perfeito naquele momento. Será que isso não pode ser levado em consideração na hora do Julgamento Final?
- Petúnia, se é que há essa coisa de Julgamento Final, isso é para decidir se você vai pro Inferno ou pro Céu e não se você vai morrer ou viver.
- Isso vindo de alguém cujo conceito de filme legal é As Virgens Suicidas? – perguntei.
- Ei, Sofia Coppola provou um ponto naquela história.
- É, tipo: é melhor se matar do que ser oprimida pelos pais. Belo ponto!
- Não, sua idiota. A moral é: a opressão dos pais leva as adolescentes ao desespero.
- Certo. Eu adoraria brincar de Quem-é-o-melhor-cineasta-cult-e-qual-a-moral-da-história com você, mas vamos esquecer esse drama e nos focar no meu problema? – perguntei.
- Tá, eu vou falar com o Arnaldo. Enquanto isso se aquiete.
- Ficarei bem quietinha.
Eu quase não falei mais com ela pelo resto da tarde. Queria que ela estivesse calma e de bom humor para fazer o que eu queria que fizesse.
Depois do jantar ela disse:
- Vamos, antes que eu desista.
Entramos no quarto dele.
- E aí, seu delinquente? Já leu Harry Potter e as Relíquias da Morte?
- Eu não gosto de HP.
- Que seja, mas e aí? Que papo é esse que você gosta da Petúnia?
- Quem te falou isso?
- Um passarinho.
- Deixa de ser idiota, Anita.
- Você gostava dela, né?
- Eu amava ela.
- Puxa. Que profundo! E quantas vezes vocês conversaram para que você desenvolvesse sentimentos tão intensos? Ah, deixe-me adivinhar: nenhuma?
- Me deixa em paz. Você é apenas uma maluca que fala com as paredes e que não entende nada sobre isso.
- Tem razão. Eu verdadeiramente não entendo o que faz um cara se apaixonar por uma capitã do time de vôlei toda popular.
- Eu entendia a Petúnia, certo? E ela não era dessas garotas afetadas e vazias. Ela era especial. Infelizmente parece que ela não sabia disso.
- Ah, Romeu, mas aposto que agora ela deve estar sabendo...
- Do que você tá falando?
- Você é uma piada, maninho, mas se serve de consolo eu tenho grandes novidades...
- O quê?
- Ela está aqui agora.
- Sai daqui, Anita.
- Eu falo com os mortos, pode acreditar.
- De todas as suas loucuras essa é a mais louca, Anita.
- Eu sei, mas é real.
- Eu não sei o que pensar... Talvez você devesse procurar ajuda de um psiquiatra. Já pensou em falar com a mamãe sobre isso?
- Você é um grande imbecil, sabia?
- Pelo amor de Deus, Anita. Escute bem o que você acabou de me dizer! Você disse que fala com os mortos! Como quer que eu leve a sério uma coisa assim?
- Fala pra ele da festa do Pedro ano passado. – pedi.
- Ela está perguntando se você lembra da festa do Pedro ano passado? O que isso tem a ver, hein?
- Ela o quê?
- Festa do Pedro? Soa familiar?
- Hum... Sim, mas... Como você sabe disso?
- Ela acabou de me falar.
- Ah, ta. – ele riu.
- É sério, Arnaldo. Você acha que eu ia brincar com uma coisa dessas?
- E eu sei lá.
- Sim, ela disse. Eu juro.
- Olha, Anita, tem certeza que isso não é mais uma de suas brincadeiras? Porque se for você vai se arrepender.
- Dá pra parar de ser babaca pelo menos uma vez?
- Ela falou dessa festa? Porque eu tenho certeza que ela nem se lembraria.
- Acredite, ela lembra. Ela está aqui agora.
- Isso não pode ser verdade. O que ela está fazendo nesse exato momento?
- Olhando pra você com cara de idiota.
- Eu não consigo acreditar.
Comecei a cantar:
- “Over you… I'd gladly be a fool and love again… If there's a chance of you mind see me… Touch me, want me, ever need me… I'm still going crazy… Over you…
- O que é isso? – a Anita perguntou.
- Isso o quê? – ele perguntou.
- I’m still going crazy over you...? É uma música?
Ele parecia assustado.
- Diz pra ele que a gente estava na garagem sozinhos dançando essa música quando os meninos estavam na sala jogando Xbox. E eu disse “Eu tenho que ir embora...” e ele falou: “Antes que a carruagem se transforme em abóbora?”, e eu respondi: “Não. Antes que eu fique de castigo pelo resto da minha vida”.
- Ela disse que vocês estavam sozinhos na garagem dançando essa música, enquanto os meninos estavam na sala jogando Xbox. Então ela disse “Eu tenho que ir embora...” e você perguntou: “Antes que a carruagem se transforme em abóbora?”, aí ela respondeu “Não. Antes que eu fique de castigo pelo resto da minha vida”.
- Ela está mesmo aqui, não é?
- Ela quer saber por que você nunca falou com ela depois daquele dia.
- Porque eu ia falar com ela se eu nunca teria chance mesmo? Eu sou um fracassado, certo? E fracassados não têm chance com garotas como ela. Eu achei melhor não forçar a barra e tocar no assunto para evitar a humilhação pública. E eu tinha quase certeza que ela só chegou e começou a dançar comigo porque estava bêbada.
- Ele não é um fracassado.
- Ela disse que você não é um fracassado. Ela gosta de você.
- Eu gosto dele? Eu amo ele! – gritei.
- Fica calma senão eu saio. – ela virou-se pra mim.
- Eu gosto dela.
- Ela mandou dizer que ama você.
- Eu daria tudo pra poder falar com ela de novo.
- Você pode falar agora. Ela está ouvindo.
- Eu ainda não estou acreditando.
- Olha, eu estou ao ponto de vomitar com vocês dois, então vou voltar pro meu quarto. Petúnia, fique aí se quiser.
Eu fiquei.
- Você está aqui? – ele perguntou. – Isso é muita loucura.
Suspirei e me aproximei do notebook, abri o Word e digitei:
Eu sei que é loucura, mas eu estou aqui. E eu adoro você.
Ele arregalou os olhos e se aproximou sentando na cadeira na frente da tela. Os olhos esverdeados brilhando. Continuei:
Sinto muito que você não possa me ver. E que agora eu não possa fazer mais nada. Você merecia muito mais do que o pouco que eu tenho para te oferecer agora.
Ele digitou:
O pouco que você tem para me oferecer é tudo o que eu sempre quis.
Uma dor forte me rasgou. Era felicidade e tristeza ao mesmo tempo. Até então não imaginava que essas duas sensações tão opostas pudessem se encontrar uma vez só.
Ele digitou novamente:
Você ainda está aqui?
Eu digitei:
Eu sempre estarei aqui.
Ele sorriu, salvou o arquivo e deitou na cama. Eu deitei ao lado dele olhando seu rosto. A pele branquinha, as pequeninas sardas nas bochechas e no nariz. A covinha no queixo dele. Eu queria beijá-lo inteirinho. Coloquei minha mão em cima da dele. Eu podia senti-lo e o calor do seu corpo me causava tremores gostosos e incontroláveis.
Ai como é difícil estar morta e se sentir viva ao mesmo tempo!






















CAPÍTULO 12
Ok. Então... Existe algo mais bizarro do que você estar presente na sua própria missa de 7º dia? Eu acho que não e todos vão concordar comigo aqui.
Os alunos estavam presentes no campo de futebol para a celebração da minha memória. Urgh! Eu vomitaria se pudesse. O diretor fez um discurso como se eu fosse a melhor pessoa do mundo (o que eu tenho certeza que não é o caso, aquele velho sempre me odiou. De qualquer modo, tanto faz. Eu estou morta, então não importa). Ele informou que o conselho psicológico da escola estava de portas abertas para quem precisasse de ajuda e eles dariam todo o suporte aos alunos nesse momento triste e lamentável.
As meninas estavam chorando na primeira fila. Eu tive pena delas. Meus olhos varreram as pessoas ao redor e eu vi o Vitor. Em vez de estar inconsolável com a minha perda, ele estava com uma expressão de tédio profundo e sono. Quer dizer, ele até bocejou. Eu me aproximei. Seria tão bom se ele pudesse me ver e levasse um susto que o fizesse pular do banco, mas para o meu descontentamento absoluto, é claro que isso não aconteceu.
Vitor estava trocando mensagem pelo celular e eu pude ver o que ele escreveu.
“Q horas serah q essa merda toda vai acabar?”
Eu senti um ódio profundo. Ele era o culpado – bem, tecnicamente – de tudo e no fim das contas nem se importava? Que tipo de cara age assim?
Eu não consigo entender esse tipo de coisa.
Movida por uma raiva avassaladora eu empurrei a mão dele fazendo o celular cair no chão. Ele olhou para os dois lados, mas apenas se abaixou e pegou de volta.
- Merda! – falou quando viu que a tela do seu iPhone 5 estava trincada.
Eu 1x0 Vitor.
Eu saí andando e vi o Arnaldo. Meu coração deu uma leve cambalhota. Ele estava chorando sentado bem solitário na arquibancada. Não havia mais ninguém ao lado dele. Eu sentei e segurei sua mão. Apertei.
- É você? – sussurrou.
Apertei mais forte. Então pela primeira vez... Ele consciente do meu toque apertou a minha mão também. Eu estava de mãos dadas com ele sentindo a pele dele formigando na minha. Esse era o momento mais romântico que já passei.
Apesar de tudo eu me sentia feliz. Mesmo que o Arnaldo não pudesse me ver. Pois eu sabia que ele sentia por mim o mesmo que eu sentia por ele.
***
Reciprocidade é tudo. No amor, na amizade, na família... Em todas as situações. Dar e receber carinho, compreensão, apoio, respeito. Isso é a coisa mais importante. Infelizmente tenho que admitir que nunca fui muito boa nisso. As minhas amigas não pareciam se importar realmente comigo, com meus sentimentos ou nada assim. Elas só se importavam com elas mesmas. E os garotos... Bem, eles me viam como “a gostosa do time de vôlei” e somente. Era um vazio olhar para todo mundo do colégio e ter a atenção constante deles, mas não ser de fato “percebida”. Eu era popular, mas não possuía nenhum significado importante para nenhum deles. Me sentia sozinha na maior parte do tempo. Sem ninguém com quem me abrir, ninguém que gostasse de verdade de mim.
A Anita foi a única amiga verdadeira que eu tive.
- Não vou te xingar por você ter ido na escola hoje.
- Que bom.
- Mas eu fiz umas pesquisas e acho que entendi tudo.
- Tudo o quê?
- Talvez o fato de você nunca ter amado de verdade quando você estava viva, tenha dificultado sua passagem. Então sua pendência era essa: conhecer o amor verdadeiro antes de passar para o outro lado.
Meu peito parecia ter levado um tiro.
- Então é isso? Agora que eu me apaixonei e sou feliz eu tenho que ir embora daqui?
Se ao menos eu soubesse antes... Eu o amaria também. Se eu soubesse que havia uma chance do coração dele bater pelo meu... O meu bateria pelo dele... Eu nunca achei que fosse possível. Mas o mundo é mesmo um lugar impossível, e agora que eu morri é mais impossível ainda. Ele ainda vai amar alguém e ser feliz. Mas e eu? Eu desperdicei tanto tempo querendo ser amada por alguém que jamais pensei que a pessoa que eu menos imaginava pudesse me amar. E agora eu sei que o amo. É possível amar alguém só depois que se morre? Bom, parece que tudo é possível agora...
- Infelizmente é isso aí.
- E seu irmão?
- Ele agora já sabe que você gosta dele. A vida dele tem que continuar. E além do mais vocês não podem viver esse romance sobrenatural trocando declarações de amor do além para toda a eternidade.
Sim, eu sabia.
- Me deixa me despedir dele.
- Claro.
Ela ficou me olhando.
- Eu não vou aguentar olhar para ele de novo e ter que ir embora.
Anita ficou calada e parecia triste.
- Vou escrever uma carta e você entrega para ele, certo?
- Claro.
Ela saiu e me deixou sozinha. Enquanto eu escrevia a minha mão tremia e as lágrimas não paravam de pular dos meus olhos. Não me lembro de ter chorado tanto. De ter tido um momento mais difícil e triste do que escrever essa carta de despedida. Eu só queria que ele lesse e entendesse tudo o que eu sinto por ele.
Arnaldo,
Você foi a pessoa que eu mais amei. Mesmo que tenha sido tarde demais, eu não me arrependo de nada que eu fiz. Quer dizer, a morte me levou a você e isso foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu morreria mil vezes se preciso fosse para te encontrar. Só queria que você soubesse. Eu vou te amar para sempre. Mas eu não quero que você seja infeliz sem mim, apenas saiba que o que sentimos foi e é real. No entanto, continue vivendo, encontre uma garota que mereça seu coração. E talvez um dia a gente se encontre outra vez. Eu estarei esperando. Por toda a eternidade.
Com todo o amor do mundo,
Petúnia
Levou um bom tempo até que eu me acalmasse. E a Anita voltou. Eu dobrei e entreguei a ela.
- Pode ler se quiser.
- Não.
- Tá, vamos acabar logo com isso. – falei.
E nós fomos em silêncio até o cemitério.
É difícil aceitar que não terei a minha vida de volta. Mas eu não posso ficar vagando sem rumo para sempre. Eu tenho que atravessar e ir para um lugar que eu não conheço, mas que é o lugar que eu devo pertencer.
De uma maneira estranha eu sentirei falta dela.
- Descanse em paz. – ela disse sorrindo antes de me abraçar.
- Certo. – falei fazendo um esforço para engolir as lágrimas.
- Fecha os olhos. A próxima vez que abrir os olhos você provavelmente verá uma luz muito forte. Não tenha medo e corra para ela. Lá é o seu lugar.
Eu me aproximei dela e a abracei de novo.
- Obrigada, Anita. Não sei o que seria de mim sem você.
- Só uma patricinha popular e capitã do time de vôlei morta... Uau, isso deve ser o sonho de muitos que não fazem parte da panelinha. – ela disse sorrindo.
- Cuida bem dele pra mim?
- Cuido sim. Agora vai.
- Tenha uma boa vida.
- E você tenha uma boa morte.
Então se afastou e começou a fazer aquele ritual. Fechei os olhos e esperei. Se eu estava com medo? A resposta era sim, claro. Mas eu iria levar o amor que eu sentia pelo Arnaldo para onde quer que eu fosse. Eu alcancei tudo o que eu queria. Um amor verdadeiro como eu sempre sonhei. Só que eu tive que morrer para sentir isso.
Comecei a falar mentalmente:
Eu estou pronta pra seguir adiante. Para ir a qualquer lugar que eu deveria estar. Eu estou preparada para deixar minha vida terrena para trás, me desapegar de tudo, parar de lamentar pelo que eu deixei. Eu sei que a culpa foi minha por não ter dado chance de conhecer melhor as pessoas certas e que o arrependimento não pode me matar porque eu já estou morta, mas eu assumo os meus erros e só posso esperar que eu vá para um bom lugar.
O silêncio se fez. Não ouvia mais a voz da Anita murmurando e fiquei com medo de abrir os olhos. Uma luz intensa tomava conta de tudo. Eu não estava mais no cemitério. E uma nuvem luminosa me envolveu. Meu corpo flutuou sob a luz resplandecente. Eu parecia boiar numa piscina de água fresca e pura. Senti uma paz sem igual e uma plenitude que jamais encontrei. Era como ser abraçada por alguém que me amava muito. E eu subia, subia, subia. Estava preenchida por uma sensação de amor infinita e gloriosa, maior que tudo. Não havia dor, dúvidas, depressão ou angústia, apenas a certeza de que para onde é que eu estivesse indo seria feliz.
Se você pudesse ter um último desejo qual seria?
Eu não tinha certeza se a voz que perguntou isso vinha de fora ou dentro da minha mente, pois eu não via mais nada além da luz. Acho que a morte me deixou maluca, só pode. Mas a voz parecia real. E de uma maneira ou de outra em meio a tantas coisas loucas que aconteceram nos últimos dias, aquilo não parecia ser tão maluco.
Meu desejo seria uma segunda chance para voltar a viver e amar o Arnaldo, é tudo o que eu queria.
E então a luz se apagou. Só havia trevas agora.


CAPÍTULO FINAL
Dor e tédio. Tédio e dor. Não sei por que estava tendo essa consciência tão de repente. Era muito escuro. Eu precisava abrir os olhos e ver o que me esperava do outro lado. Concentrei minhas forças nas pálpebras que pesavam e a luz quase me cegou. Não era uma luz direta sobre meus olhos – como aquela que eu vi antes – e sim a claridade do ambiente. Era como se meus olhos estivessem fechados por muito tempo e eu tivesse que me acostumar com a iluminação. Então um rosto surgiu lentamente no meu campo de visão. Pouco a pouco consegui focar e vi os olhos esverdeados.
- Anita, é você?
Ela sorriu.
- Não, é o meu espírito. Eu acabei morrendo de tanto você encher meu saco.
- Vejo que a morte lhe cai bem. Você está sorrindo.
- Pois é, e a vida lhe cai bem.
- Então... Eu não estou entendendo mais nada.
- Parece que você está bem viva.
- Ai, meu Deus. – eu apertei o braço dela.
- Ai!
- Você se lembra de tudo?
- Claro que sim.
- Mas como? Foi tudo real?
- É um mundo louco esse, Petúnia. Nem tudo dá para ser explicado. Foi real pra você?
- Bem, o que eu sinto pelo seu irmão é real. E a nossa amizade é real.
- Eu só vim ver como você estava. É melhor eu ir antes que outras pessoas me vejam por aqui.
- Mas...
- Você sofreu um acidente. Foi atropelada por um ônibus e esteve em coma por sete dias. E agora acordou. Vamos chamar isso de milagre.
- Mas...
- A gente se vê na escola.
Ela deixou a flor do lado da cabeceira e sorriu mais uma vez antes de ir embora.
No minuto seguinte uma enfermeira apareceu.
- Não. É. Possível – falou chocada. – Eu vou chamar o Dr. Eurico.
Ela saiu.
Logo depois veio o médico, meu pai, minha mãe, meu irmão. Acontece que eu estava em coma por sete dias. E teoricamente era irreversível. Foi mesmo um milagre. Como se eu tivesse ressuscitado. O que era meio verdade mesmo. Então fui abraçada pelos meus pais e pelo meu irmão, falei do quanto senti a falta deles. Mas não contei nada sobre a minha experiência paralela do outro lado. Nem mesmo quando a Lourdes e a Sarita foram me visitar no dia seguinte. Elas só falaram do quanto o colégio era um saco sem mim. E eu falei do quanto era um porre ter perdido o jogo de vôlei do campeonato intercolegial.
Quando fui para casa eu realmente me senti no lar. A alegria não cabia em mim. Nunca fiquei tão feliz por estar ali. Meus pais não queriam que eu fosse pro colégio – o que em outros tempos eu iria amar, mas não era mais o caso – porém eu jurei que estava bem. O Dr. Eurico também havia falado que não tinha problemas eu voltar à escola.
Então na segunda feira no colégio a primeira pessoa que vejo entrando no portão é ele. E meu coração dá um salto tão alto que eu penso que posso voar. Apresso meu passo para ir falar com ele. É a Anita quem me puxa pela camiseta.
- O que você pensa que tá fazendo?
- Eu vou falar com ele.
- Mas é claro que não.
- Por quê?
- Ele não se lembra de nada.
- Mas como assim? E porque você lembra?
- Eu sou a médium aqui, esqueceu esse detalhe? Fui eu quem ajudei você a atravessar.
- E agora o que eu faço com relação a ele? Vou fingir que nunca aconteceu?
- Você quer que ele pense que você anda usando drogas psicotrópicas?
- Não.
- Então siga o meu conselho.
- Obrigada, Anita. Por tudo.
- Não me abrace em público.
- Afe, como você é chata. A gente também vai fingir que nada aconteceu?
- Não, né sua tonta? A gente só vai fingir pros outros. Uma amizade não surge assim do nada.
- Sabe, Anita, você está errada. E danem-se os outros.
Eu a abracei forte e ela resistiu, mas depois me abraçou também.
- Tá, agora para porque o povo está olhando como se fôssemos namoradas.
Eu ri.
- Sua besta.
Ela riu de volta e olhou para trás de mim. Me virei para ver o que ela olhava. Era o Arnaldo.
Ele parou e me olhou e eu olhei diretamente para ele.
- Vai com calma. – disse baixinho e saiu.
- Oi! – falei animadamente e assustada por estar tão perto e saber que ele podia me ver.
- Oi. – ele disse desconfiado.
- E aí? Você por aqui.
- É...
Percebi que eu era a estranha e ele era o normal em agir assim. Ele estava na escola. Não é o lugar que vamos todos os dias?
- É bom ver você.
- Ah... – ele estava totalmente sem graça, dava pra ver. – É bom ver você também. E aí? Você está melhor?
- Tô, foi um milagre, né?
- Bem, é como dizem... Milagres acontecem todos os dias.
- Pois é.
- Tá, então.
- Eu tô indo pra lá, sabe, assistir aula.
Dãaa! Como é que eu podia ser tão idiota? Não havia nada mais para falar? O pior é que havia tantas coisas... Mas se eu falasse ele ia achar que eu era uma maníaca esquizofrênica.
- Você está bem mesmo pra voltar às aulas? – ele perguntou.
- Eu nunca estive melhor em toda a minha vida.
Ele sorriu aquele sorriso lindo.
- Certo. É muito bom saber disso.
Ah, Arnaldo, você nem faz ideia...
- Então, eu acho que a gente se vê. – falei.
- É.
Eu balancei a cabeça e saí andando. Tenho que tentar agir como uma pessoa normal, mas parece que é difícil manter o controle quando se passa por uma experiência pós-morte. É meio perturbador voltar do Mundo dos Mortos.
- Ei...
Eu sorri e apertei os olhos antes de me virar. Ele estava me chamando. E agora, pela primeira vez, mais forte do que nunca eu realmente sentia e ouvia o bater frenético do meu coração. Como é bom estar viva!
- Oi. – me voltei para ele com os olhos brilhantes.
- Você... – ele parou e riu timidamente.
Fala, fala logo... Fala o que eu quero ouvir.
- Sim?
- Você vai fazer o quê mais tarde? Quer fazer alguma coisa?
- Quero, eu quero ver você.
Socorro! O que eu acabei de falar?
- Tá certo. – ele respondeu sorrindo.
O olhar dele me faz sonhar. Então ele ficou do meu lado e nós fomos andando juntos entrando na escola olhando um nos olhos do outro.

FIM



 PS: Este conto faz parte da Antologia Desejos (Editora Buriti) lançado este ano.